sábado, 28 de janeiro de 2012

Mário Dos Martins Coelho - Jáder de Carvalho

Foi uma notícia má, desconcertante, mas envolvida na pluma da ternura. Uma notícia em música de acalanto, ou em música mais leve ainda. Todas as tragédias pessoais, todos os dramas da família, todo fim de amigo ou de parente deviam ser dados numa canção apenas murmurada. Assim, a gente sofria menos. Os nervos se colocavam no caminho do coração, evitando sístoles violentas, diástoles fora de medida, num amaciamento preventivo, numa preparação racional que os moços e os velhos já não dispensam, nestes dias de agitação, inquietudes e insatisfações – dias muito mais de morte que de vida.
Na palavra de João Clímaco – pelo menos para mim – o trespasse do velho amigo Mário (Mário Dos Martins Coelho, para os atos civis, o foro) revestiu-se do aspecto de uma simples mudança, da troca de uma rua por outra, de uma casa por outra casa. Quando cheguei às últimas linhas do “Coração em silêncio”, não via um morto à minha frente: enxergava um vivo, aquele vivo calado, introspectivo, porém sensível a tudo que se passava em redor: arte, polícia ou ciência.
Fomos amigos desde muitos anos. Não lhe conheci os filhos. Ele não conhecia os meus. Criatura de poucas palavras para muitos, talvez para a maioria dos homens, em relação a mim foi sempre um autêntico joão – pergunta. “Que está lendo?” “Como vai o romance?” Não se interessa mais pela advocacia?” “Qual a briga de amanhã?” As vezes vinha a provocação brincalhona.:
- Ando desconfiado de uma coisa: o seu “Caldeirão” acaba não saindo...
Compreendia o alcance da insinuação. E, rindo, desculpava-me:
- Sairá Mário. Sairá. Não se preocupe: aproveitei com toda a lisura o material que você me deu. Assim que o “Aldeota” chegar...
O provocador voltava à provocação de puro amigo, feita apenas para surtir o efeito que ele desejava:
- Estão dizendo que o “Aldeota” também não sai...
Depois, vinha conversar sobre livros novos, a nunca ausente troca de ideias sobre este ou aquele autor, esta ou aquela obra. Mário percorria diariamente toda a RENASCENÇA. Da vitrine à vizinhança de Luis Maia, onde se localiza a seção de Direito.
Fomos juntos os advogados de Calixto Ramos, na ação proposta contra o SERVILUZ. Ele sempre me trazia os assuntos exaustivamente debulhados. E, por um sentimento de delicadeza e de absoluta ausência de egoísmo, sempre dividia comigo o trabalho que o levara a esta ou aquela conclusão vitoriosa:
- Como vê, nós destruímos totalmente os argumentos da parte contrária.
Mas eu não me conformava:
-  Mário, quanto a mim, eu não destruí coisa nenhuma. Você foi quem desfez tudo. Esta causa está sendo ganha por você, sozinho. Eu sirvo apenas de testemunha. No máximo, serei cúmplice na sua vitória, já que assinamos juntos petições  e razões.
*
Para mim, por culpa de João Clímaco, esta morte do Mário foi morte diferente, sem tragédia, natural como o entardecer, como a vinda das estrelas logo que anoitece. Não o vislumbro inerte no caixão. Não o sinto de sorriso parado. Não lhe vejo às pálpebras descidas sobre aqueles olhos levemente maliciosos – olhos por onde ele falava, sorria, ironizava.
Vejo-o de pé, correndo com a vista o lombo de mil livros. Vejo-o naquele andar silencioso, de visitante educado e prudente no quarto de amigo enfermo. Não lhe escutei os passos na vida. Não os escutei na morte, tão de mansinho ele nos fugiu. No mundo dos mortos, quando deram pela sua presença, ele achou graça, com certeza:
- Agora, gente, eu tenho que mudar de vida?
29.7.1963
Escrito por Jáder de Carvalho
Livro: Meu Passo na Vida Alheia. Ed. Terra de Sol. 1981. Fls. 111 a 113. 

Adauto Coelho, meu pai - George Coelho


Adauto Coêlho foi meu pai. Filho de Sebastão Egidio Coêlho e Raimunda Martins Coêlho. Nasceu em 1911, no Cascavel da rapadura. O Coêlho do seu nome tinha acento circunflexo. Dizem que Coêlho assim vem da família judia Cohen e que o acento era o diferencial de identificação entre os da raça e, ao mesmo tempo, os escondia das perseguições dadas aos cristãos novos pelo reino de Portugal e Castela. Mesmo sendo verdade, o sangue e temperamento judeu há muito já se perdeu entre nós imiscuído no caldo cultural da descendência no Brasil. A pele branca, feito louça, e os olhos azulados de meu pai, não negam ter vindo de Portugal. A cor da minha pele também é de desconfiar tenha um ramo do DNA de lá. Nesga de sangue que restou prevalente ante à mistura feita com sangue índio tapuia dos pés da serra da Ibiapaba. Explico: meu pai casou com minha mãe Aldenora que tinha sangue portugues de meu avô e indígena de minha avó do Crateús. O lado índio realçou em minha mãe os cabelos pretos luzidios e o gosto por viagens.

Meu pai era advogado formado em 1943 pela Faculdade de Direito do Ceará. Gosto do número de sua OAB-CE: 390. Já graúdo, custei a entender Papai. Poderia ter sido juiz, desembargador, promotor de justiça, dono de cartório etc. Sobrava nele cultura e inteligência pra bem mais disso. Não quis. Faltava-lhe ambição ao dinheiro e ao poder. Não me lembro de ter-lhe visto manuseando dinheiro. Coisa estranha! Ausência completa de querer ascender às classes sociais mais altas. Carecia disso não. Também, não me recordo de ter ouvido meu pai dizendo um só palavrão. Respeitava exageradamente a ordem e o direito no sentido amplo. Seu modo de ser dava-lhe um atributo raro: a honestidade e o senso de justiça que, via de regra, não são bons predicados pra quem quer vencer na vida, no sentido prático da palavra vencer.

De que meu pai gostava além da família? Não era do direito, embora o conhecesse bem e sim de eletrônica e mecânica que também dominava. A ruma de revistas de rádio amador, mecânica popular, que ainda as tenho herdadas dele, não me deixa mentir. Tinha amigos fiéis na faixa de rádio-cidadão, onde era o PX7-1130, que lembrava como hora do almoço. O guarda-roupas e o seu birô escondiam rádios velhos que ele os consertava e canibalizava suas peças pra usá-las em outros rádios. Também não quis ganhar dinheiro com o hobby. Me lembro, menino na Piracuruca de 1955, na penumbra, um rádio alumiando com seu olho mágico uma fala incompreensível para mim. Pus-me a ir por detrás do dispositivo pra tentar descobrir o sujeito falante e nada vi. Me lembro também de uma galena que ele a fez com um capacitor variável pra sintonizar emissoras; de um avião que voava repetidas voltas em círculos alimentado por um motor à pilha. Brinquedo extraordinário pra época, construido por suas habilidosíssimas mãos. Guardou por muito tempo um avião que andava bipando e piscando e também um carro controlado através de um fio. Quando não se falava em computador, já tinha papai um brinquedo eletrônico que imitava grotescamente um jogo de ping-pong.

Mais me recordo e volto mais ao passado das petecas, às vezes de milho, às vezes de couro, que fazia e nos dava; das figuras planas de equilibristas em madeira que a gente controlava os saltos; das flautas de bambu; dos cavalos feitos de hastes de carnaúba; dos carros de empurrar; dos rudimentares instrumentos de reproduzir foto em parede feitos com lentes e caixas de sapatos; dos caleidoscópios feitos com tubos de papel, cacos de vidros e espelhos, formando mil e um desenhos simétricos fantásticos. Ainda tenho dele algumas de suas máquinas fotográficas antigas e negativos de fotos em vidro que não sei a origem; um projetor ocular de slides chamado Televisex. De sobra, meu pai pescava bem e também gostava de caçar de espingarda, quando essas coisas, de tão abundante que era a natureza, não se constituiam ato danoso. Tinha um revolver prateado que nunca usou trancado num arquivo de metal. Uma estante preta cheia de livros, uns deles muito especiais pra mim: a coleção Tesouro da Criança. Comprava tudo de segunda mão. Não era por pãodurismo, era mesmo a falta de dinheiro aliada à sua natureza conservadorista.

A palavra preferida de papai era colibri. Uma vez me disse que sua cidade de sonho era Veneza. Não sei porque Veneza. Uma outra vez descobri, ainda menino, na gaveta de baixo do lado direito do birô grande onde punha os seus cacarecos e soldava transistores e diodos... Descobri um lado pra mim desconhecido que supunha incompatível com meu pai. Umas poucas revistas pequenas com fotos de cabarets famosos de Paris exibindo dançarinas cujas partes pudicas vinham cobertas com uma estrela preta. Meu sentimento de culpa por alguns atos solitários - demonizados pelo catolicismo - que eu praticava, se atenuou. Afinal, meu pai também pecava. O sexo também fazia parte de sua natureza. Natureza que custei a compreender e que hoje, serenado o tempo, e se me fosse dado escolher o pai, não gostaria que fosse outro.

George Alberto de Aguiar Coelho