Na palavra de João Clímaco – pelo menos para mim – o trespasse do velho amigo Mário (Mário Dos Martins Coelho, para os atos civis, o foro) revestiu-se do aspecto de uma simples mudança, da troca de uma rua por outra, de uma casa por outra casa. Quando cheguei às últimas linhas do “Coração em silêncio”, não via um morto à minha frente: enxergava um vivo, aquele vivo calado, introspectivo, porém sensível a tudo que se passava em redor: arte, polícia ou ciência.
Fomos amigos desde muitos anos. Não lhe conheci os filhos. Ele não conhecia os meus. Criatura de poucas palavras para muitos, talvez para a maioria dos homens, em relação a mim foi sempre um autêntico joão – pergunta. “Que está lendo?” “Como vai o romance?” Não se interessa mais pela advocacia?” “Qual a briga de amanhã?” As vezes vinha a provocação brincalhona.:
- Ando desconfiado de uma coisa: o seu “Caldeirão” acaba não saindo...
Compreendia o alcance da insinuação. E, rindo, desculpava-me:
- Sairá Mário. Sairá. Não se preocupe: aproveitei com toda a lisura o material que você me deu. Assim que o “Aldeota” chegar...
O provocador voltava à provocação de puro amigo, feita apenas para surtir o efeito que ele desejava:
- Estão dizendo que o “Aldeota” também não sai...
Depois, vinha conversar sobre livros novos, a nunca ausente troca de ideias sobre este ou aquele autor, esta ou aquela obra. Mário percorria diariamente toda a RENASCENÇA. Da vitrine à vizinhança de Luis Maia, onde se localiza a seção de Direito.
Fomos juntos os advogados de Calixto Ramos, na ação proposta contra o SERVILUZ. Ele sempre me trazia os assuntos exaustivamente debulhados. E, por um sentimento de delicadeza e de absoluta ausência de egoísmo, sempre dividia comigo o trabalho que o levara a esta ou aquela conclusão vitoriosa:
- Como vê, nós destruímos totalmente os argumentos da parte contrária.
Mas eu não me conformava:
- Mário, quanto a mim, eu não destruí coisa nenhuma. Você foi quem desfez tudo. Esta causa está sendo ganha por você, sozinho. Eu sirvo apenas de testemunha. No máximo, serei cúmplice na sua vitória, já que assinamos juntos petições e razões.
*
Para mim, por culpa de João Clímaco, esta morte do Mário foi morte diferente, sem tragédia, natural como o entardecer, como a vinda das estrelas logo que anoitece. Não o vislumbro inerte no caixão. Não o sinto de sorriso parado. Não lhe vejo às pálpebras descidas sobre aqueles olhos levemente maliciosos – olhos por onde ele falava, sorria, ironizava.
Vejo-o de pé, correndo com a vista o lombo de mil livros. Vejo-o naquele andar silencioso, de visitante educado e prudente no quarto de amigo enfermo. Não lhe escutei os passos na vida. Não os escutei na morte, tão de mansinho ele nos fugiu. No mundo dos mortos, quando deram pela sua presença, ele achou graça, com certeza:
- Agora, gente, eu tenho que mudar de vida?
29.7.1963
Escrito por Jáder de Carvalho
Livro: Meu Passo na Vida Alheia. Ed. Terra de Sol. 1981. Fls. 111 a 113.
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