sábado, 28 de janeiro de 2012

Adauto Coelho, meu pai - George Coelho


Adauto Coêlho foi meu pai. Filho de Sebastão Egidio Coêlho e Raimunda Martins Coêlho. Nasceu em 1911, no Cascavel da rapadura. O Coêlho do seu nome tinha acento circunflexo. Dizem que Coêlho assim vem da família judia Cohen e que o acento era o diferencial de identificação entre os da raça e, ao mesmo tempo, os escondia das perseguições dadas aos cristãos novos pelo reino de Portugal e Castela. Mesmo sendo verdade, o sangue e temperamento judeu há muito já se perdeu entre nós imiscuído no caldo cultural da descendência no Brasil. A pele branca, feito louça, e os olhos azulados de meu pai, não negam ter vindo de Portugal. A cor da minha pele também é de desconfiar tenha um ramo do DNA de lá. Nesga de sangue que restou prevalente ante à mistura feita com sangue índio tapuia dos pés da serra da Ibiapaba. Explico: meu pai casou com minha mãe Aldenora que tinha sangue portugues de meu avô e indígena de minha avó do Crateús. O lado índio realçou em minha mãe os cabelos pretos luzidios e o gosto por viagens.

Meu pai era advogado formado em 1943 pela Faculdade de Direito do Ceará. Gosto do número de sua OAB-CE: 390. Já graúdo, custei a entender Papai. Poderia ter sido juiz, desembargador, promotor de justiça, dono de cartório etc. Sobrava nele cultura e inteligência pra bem mais disso. Não quis. Faltava-lhe ambição ao dinheiro e ao poder. Não me lembro de ter-lhe visto manuseando dinheiro. Coisa estranha! Ausência completa de querer ascender às classes sociais mais altas. Carecia disso não. Também, não me recordo de ter ouvido meu pai dizendo um só palavrão. Respeitava exageradamente a ordem e o direito no sentido amplo. Seu modo de ser dava-lhe um atributo raro: a honestidade e o senso de justiça que, via de regra, não são bons predicados pra quem quer vencer na vida, no sentido prático da palavra vencer.

De que meu pai gostava além da família? Não era do direito, embora o conhecesse bem e sim de eletrônica e mecânica que também dominava. A ruma de revistas de rádio amador, mecânica popular, que ainda as tenho herdadas dele, não me deixa mentir. Tinha amigos fiéis na faixa de rádio-cidadão, onde era o PX7-1130, que lembrava como hora do almoço. O guarda-roupas e o seu birô escondiam rádios velhos que ele os consertava e canibalizava suas peças pra usá-las em outros rádios. Também não quis ganhar dinheiro com o hobby. Me lembro, menino na Piracuruca de 1955, na penumbra, um rádio alumiando com seu olho mágico uma fala incompreensível para mim. Pus-me a ir por detrás do dispositivo pra tentar descobrir o sujeito falante e nada vi. Me lembro também de uma galena que ele a fez com um capacitor variável pra sintonizar emissoras; de um avião que voava repetidas voltas em círculos alimentado por um motor à pilha. Brinquedo extraordinário pra época, construido por suas habilidosíssimas mãos. Guardou por muito tempo um avião que andava bipando e piscando e também um carro controlado através de um fio. Quando não se falava em computador, já tinha papai um brinquedo eletrônico que imitava grotescamente um jogo de ping-pong.

Mais me recordo e volto mais ao passado das petecas, às vezes de milho, às vezes de couro, que fazia e nos dava; das figuras planas de equilibristas em madeira que a gente controlava os saltos; das flautas de bambu; dos cavalos feitos de hastes de carnaúba; dos carros de empurrar; dos rudimentares instrumentos de reproduzir foto em parede feitos com lentes e caixas de sapatos; dos caleidoscópios feitos com tubos de papel, cacos de vidros e espelhos, formando mil e um desenhos simétricos fantásticos. Ainda tenho dele algumas de suas máquinas fotográficas antigas e negativos de fotos em vidro que não sei a origem; um projetor ocular de slides chamado Televisex. De sobra, meu pai pescava bem e também gostava de caçar de espingarda, quando essas coisas, de tão abundante que era a natureza, não se constituiam ato danoso. Tinha um revolver prateado que nunca usou trancado num arquivo de metal. Uma estante preta cheia de livros, uns deles muito especiais pra mim: a coleção Tesouro da Criança. Comprava tudo de segunda mão. Não era por pãodurismo, era mesmo a falta de dinheiro aliada à sua natureza conservadorista.

A palavra preferida de papai era colibri. Uma vez me disse que sua cidade de sonho era Veneza. Não sei porque Veneza. Uma outra vez descobri, ainda menino, na gaveta de baixo do lado direito do birô grande onde punha os seus cacarecos e soldava transistores e diodos... Descobri um lado pra mim desconhecido que supunha incompatível com meu pai. Umas poucas revistas pequenas com fotos de cabarets famosos de Paris exibindo dançarinas cujas partes pudicas vinham cobertas com uma estrela preta. Meu sentimento de culpa por alguns atos solitários - demonizados pelo catolicismo - que eu praticava, se atenuou. Afinal, meu pai também pecava. O sexo também fazia parte de sua natureza. Natureza que custei a compreender e que hoje, serenado o tempo, e se me fosse dado escolher o pai, não gostaria que fosse outro.

George Alberto de Aguiar Coelho

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